Fazia tanto tempo que ela já não sabia quem era. Olhava-se
no espelho e, nos detalhes de suas feições, buscava a alma que a havia deixado.
Era um fim de tarde, bem naquele momento em que o sol já
desapareceu e as nuvens fazem parte do show visual dourado deixado pela estrela
mor. Cansada de olhar-se, reparou nos detalhes cravados na moldura do espelho. Lembrou-se
das aulas de história da arte e reconheceu traços característicos do rococó,
que lhe chamou bastante atenção. Era um exagero bonito, não é? Um espetáculo
visual recheado de drama.
E ela adorava drama. Adorava. Em sua forma pretérita mesmo. Ficou
lá nas memórias que tinha de quando fazia um dramazinho para dar emoção à sua
vida sem graça. Uma vida morna, nublada, na beiradinha, neutra. Espera! Disse
vida? Er... Ela não gostava de acreditar que aquela era sua vida, afinal.
Então ela vivia através das telinhas e telonas. Nas séries
de TV e filmes com protagonistas femininas, sempre corajosas. Tudo que ela
nunca foi. É tão mais cômodo evitar, esconder e abstrair, não é? Parece até que
anula a 3ª Lei de Newton. Isso cansa.
Olhou novamente para si. Notou que seus olhos estavam
rodeados de olheiras marcando o cansaço pelas noites mal dormidas. Pensou em
tudo o que poderia ser, mas não foi. Pensou que tudo aquilo era culpa de sua
inércia. A raiva lhe subiu à cabeça. Seu rosto queimava em tons de rosa a
vermelho vivo. Dentes cerrados, punhos fechados – com a ponta das unhas
perfurando-lhe as palmas – e respiração ofegante.
Nem ela acreditava nos pedacinhos de vidro espelhado caídos
no chão. Sua mão ensanguentada subiu ao rosto, escondendo-o do mundo. E ali ela
chorou. Como se estivessem sufocando-a. O restinho de luz do ocaso já havia ido
embora.
Respirou fundo. O rubor já havia cessado. As lágrimas
secavam. Olhou para o chão e encontrou os pedaços afiados de sua alma. Tentou apanhar
aquela bagunça, ainda que estivesse ferida. Recusava dar atenção aos seus
machucados. Então recolheu aqueles pedacinhos. Poéticos, melancólicos. Seria
aquela a primeira reação?
N.
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